19.2.10

Manucure

Na sensação de estar polindo as minhas unhas,

Súbita sensação inexplicável de ternura,

Todo me incluo em Mim – piedosamente.

Entanto eis-me sozinho no Café:

De manhã, como sempre, em bocejos amarelos.

De volta, as mesas apenas – ingratas

E duras, esquinadas na sua desgraciosidade

Boçal, quadrangular e livre-pensadora...

Fora: dia de Maio em luz

E sol – dia brutal, provinciano e democrático

Que os meus olhos delicados, refinados, esguios e citadinos

Não podem tolerar – e apenas forçados

Suportam em náuseas. Toda a minha sensibilidade

Se ofende com este dia que há-de ter cantores

Entre os amigos com quem ando às vezes –

Trigueiros, naturais, de bigodes fartos –

Que escrevem, mas têm partido político

E assistem a congressos republicanos,

Vão às mulheres, gostam de vinho tinto,

De peros ou de sardinhas fritas...


E eu sempre na sensação de polir as minhas unhas

E de as pintar com um verniz parisiense,

Vou-me mais e mais enternecendo

Até chorar por Mim...

Mil cores no Ar, mil vibrações latejantes,

Brumosos planos desviados

Abatendo flechas, listas volúveis, discos flexíveis,

Chegam tenuemente a perfilar-me.

Toda a ternura que eu pudera ter vivido,

Toda a grandeza que eu pudera ter sentido,

Todos os cenários que entretanto Fui...

Eis como, pouco a pouco, se me foca

A obsessão débil dum sorriso

Que espelhos vagos refletiram...

Leve inflexão a sinusar...

Fino arrepio cristalizado...

Inatingível deslocamento...

Veloz faúlha atmosférica...

E tudo, tudo assim me é conduzido no espaço

Por inúmeras intersecções de planos

Múltiplos, livres, resvalantes.

É lá, no grande Espelho de fantasmas

Que ondula e se entregolfa todo o meu passado,

Se desmorona o meu presente,

E o meu futuro é já poeira...

....................................................

Deponho então as minhas limas,

As minhas tesouras, os meus godets de verniz,

Os polidores da minha sensação –

E solto meus olhos a enlouquecerem de Ar!

Oh! poder exaurir tudo quanto nele se incrusta,

Varar a sua Beleza – sem suporte, enfim! –


Cantar o que ele revolve, e amolda, impregna,

Alastra e expande em vibrações:

Subtilizado, sucessivo – perpétuo ao Infinito! ...

Que calotes suspensas entre ogivas de ruínas,

Que triângulos sólidos pelas naves partidos!

Que hélices atrás dum voo vertical!

Que esferas graciosas sucedendo a uma bola de ténis! –

Que loiras oscilações se ri a boca da jogadora...

Que grinaldas vermelhas, que leques, se a dançarina russa,

Meia nua, agita as mãos pintadas da Salomé

Num grande palco a Ouro!

– Que rendas outros bailados!

Ah! mas que inflexões de precipício, estridentes, cegantes,

Que vértices brutais a divergir, a ranger,

Se facas de apache se entrecruzam

Altas madrugadas frias...


E pelas estações e cais de embarque,

Os grandes caixotes acumulados,

As malas, os fardos – pele-mêle...

Tudo inserto em Ar,

Afeiçoado por ele, separado por ele

Em múltiplos interstícios

Por onde eu sinto a minh'Alma a divagar!...



– Ó beleza futurista das mercadorias!



– Serapilheira dos fardos,

Como eu quisera togar-me de Ti!

– Madeira dos caixotes,

Como eu ansiara cravar os dentes em Ti!

E os pregos, as cordas, os aros... –

Mas, acima de tudo, como bailam faiscantes

A meus olhos audazes de beleza,

As inscrições de todos esses fardos –

Negras, vermelhas, azuis ou verdes –

Gritos de actual e Comércio & Indústria

Em trânsito cosmopolita:


Ávido, em sucessão da nova Beleza atmosférica,

O meu olhar coleia sempre em frenesis de absorvê-la

À minha volta. E a que mágicas, em verdade, tudo baldeado

Pelo grande fluido insidioso,

Se volve, de grotesco – célere,

Imponderável, esbelto, leviano...

– Olha as mesas... Eia! Eia!

Lá vão todas no Ar às cabriolas,

Em séries instantâneas de quadrados

Ali – mas já, mais longe, em losangos desviados...

E entregolfam-se as filas indestrinçavelmente,

E misturam-se às mesas as insinuações berrantes

Das bancadas de veludo vermelho

Que, ladeando-o, correm todo o Café...

E, mais alto, em planos oblíquos,

Simbolismos aéreos de heráldicas ténues

Deslumbram os xadrezes dos fundos de palhinha

Das cadeiras que, estremunhadas em seu sono horizontal,

Vá lá, se erguem também na sarabanda...

Meus olhos ungidos de Novo,

Sim! – meus olhos futuristas, meus olhos cubistas, meus olhos

Sim! – meus olhos futuristas, meus o lhos cu[interseccionistas

Não param de fremir, de sorver e faiscar

Toda a beleza espectral, transferida, sucedânea,

Toda essa Beleza-sem-Suporte,

Desconjuntada, emersa, variável sempre

E livre – em mutações contínuas,

Em insondáveis divergências...


– Quanto à minha chávena banal de porcelana?

Ah, essa esgota-se em curvas gregas de ânfora,

Ascende num vértice de espiras

Que o seu rebordo frisado a ouro emite...



...Dos longos vidros polidos que deitam sobre a rua,

Agora, chegam teorias de vértices hialinos

A latejar cristalizações nevoadas e difusas.

Como um raio de sol atravessa a vitrine maior,

Bailam no espaço a tingi-lo em fantasias,

Laços, grifos, setas, ases – na poeira multicolor –.


APOTEOSE

.....................................................................

Junto de mim ressoa um timbre:

Laivos sonoros!

Era o que faltava na paisagem...

As ondas acústicas ainda mais a subtilizam:

Lá vão! Lá vão! Lá correm ágeis,

Lá se esgueiram gentis, franzinas corças d'Alma...



Pede uma voz um número ao telefone:

Norte – 2, O, 5, 7...

E no Ar eis que se cravam moldes de algarismos:



Mais longe um criado deixa cair uma bandeja...

Não tem fim a maravilha!

Um novo turbilhão de ondas prateadas

Se alarga em ecos circulares, rútilos, farfalhantes

Como água fria a salpicar e a refrescar o ambiente...

– Meus olhos extenuaram de Beleza!

Inefável devaneio penumbroso –

Descem-me as pálpebras vislumbradamente...

............................................................

...Começam-me a lembrar anéis de jade

De certas mãos que um dia possuí –

E ei-Ios, de sortilégio, já enroscando o Ar...

Lembram-me beijos – e sobem

Marchetações a carmim...

Divergem hélices lantejoulares...

Abrem-se cristas, fendem-se gumes...

Pequenos timbres d'ouro se enclavinham...

Alçam-se espiras, travam-se cruzetas...

Quebram-se estrelas, soçobram plumas...

Dorido, para roubar meus olhos à riqueza,

Fincadamente os cerro...


Embalde! Não há defesa:

Zurzem-se planos a meus ouvidos, em catadupas,

Durante a escuridão –

Planos, intervalos, quebras, saltos, declives...

– Ó mágica teatral da atmosfera,

– Ó mágica contemporânea – pois só nós,

Os de Hoje, te dobrámos e fremimos!

....................................................

Eia! Eia!

Singra o tropel das vibrações

Como nunca a esgotar-se em ritmos iriados!

Eu próprio sinto-me ir transmitido pelo ar, aos novelos!

Eia! Eia! Eia!...


(Como tudo é diferente

Irrealizado a gás:

De livres pensadoras, as mesas fluídicas,

Diluídas,

São já como eu católicas, e são como eu monárquicas!...)

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Sereno.

Em minha face assenta-se um estrangeiro

Que desdobra o «Matin».

Meus olhos, já tranquilos de espaço,

Ei-los que, ao entrever de longe os caracteres,

Começam a vibrar

Toda a nova sensibilidade tipográfica

Eh-lá! grosso normando das manchettes em sensação!

Itálico afilado das crónicas diárias!

Corpo-12 romano, instalado, burguês e confortável!

Góticos, cursivos, rondas, inglesas, capitais!

.......................................................................................

Tipo miudinho dos pequenos anúncios!

Meu elzevir de curvas pederastas!...

E os ornamentos tipográficos, as vinhetas,

As grossas tarjas negras,

Os «puzzle» frívolos da pontuação,

Os asteriscos – e as aspas... os acentos...

Eh-lá! Eh-lá! Eh-lá! ...



– Abecedários antigos e modernos,

Gregos, góticos,

Eslavos, árabes, latinos –,

Eia-hô! Eia-hô! Eia-hô!...


(Hip! Hip-lá! nova simpatia onomatopaica,

Rescendente da beleza alfabética pura:

Uu-um... kess-kresss... vliiim... tlin... blong... flong... flack...

Pâ-am-pam! Pam... pam... pum... pum... Hurrah!)


Mas o estrangeiro vira a página,

Lê os telegramas da última-Hora;

Tão leve como a folha do jornal,

Num rodopio de letras,

Todo o mundo repousa em suas mãos!


– Hurrah! por vós, indústria tipográfica!

– Hurrah! por vós, empresas jornalísticas!


Por último desdobra-se a folha dos anúncios. ..

– Ó emotividade zebrante do Reclamo,

– Ó estética futurista – up-to-date das marcas comerciais,

Das firmas e das tabuletas!...



E a esbelta singeleza das firmas, LIMITADA

.......................................................................................

.......................................................................................

Tudo isto, porém, tudo isto, de novo eu refiro ao Ar

Pois toda esta Beleza ondeia lá também:

Números e letras, firmas e cartazes –

Altos-relevos, ornamentação! Palavras em liberdade, sons sem-fio,



Antes de me erguer lembra-me ainda

A maravilha parisiense dos balcões de zinco,

Nos bares... não sei porquê...


– Un vermouth-cassis... Un Pernod à l'eau...

Un amer-citron... une grenadine...

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Levanto-me...

– Derrota!

Ao fundo, em maior excesso, há espelhos que refletem

Tudo quanto oscila pelo Ar:

Mais belo através deles,

A mais subtil destaque...

– Ó sonho desprendido, ó luar errado,

Nunca em meus versos poderei cantar,

Como ansiara, até ao espasmo e ao Oiro,

Toda essa Beleza inatingível,

Essa Beleza pura!


Rolo de mim por uma escada abaixo...

Minhas mãos aperreio,

Esqueço-me de todo da ideia de que as pintava...

E os dentes a ranger, os olhos desviados,

Sem chapéu, como um possesso:

Decido-me!


Corro então para a rua aos pinotes e aos gritos:

– Hilá! Hilá! Hilá-hô! Ehl Eh!...

Tum... tum... tum... tum tum tum tum...





Mário de Sá-Carneiro, Poemas Dispersos, Lisboa - Maio de 1915

11.8.06

"Memórias Póstumas de Brás Cubas" de Machado de Assis

AO LEITOR


QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.

Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

Brás Cubas

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4.8.06

"Livro do Desassossego" de Bernardo Soares

Livro do Desassossego

Fernando Pessoa

Composto por Bernardo Soares,
Ajudante de Guarda-livros na cidade de Lisboa


Prefácio

Fernando Pessoa



Há em Lisboa um pequeno número de restaurantes ou casas de pasto [em] que, sobre uma loja com feitio de taberna decente, se ergue uma sobreloja com uma feição pesada e caseira de restaurante de vila sem comboios. Nessas sobrelojas, salvo ao domingo pouco frequentadas, é frequente encontrarem-se tipos curiosos, caras sem interesse, uma série de apartes na vida.

O desejo de sossego e a conveniência de preços levaram-me, em um período da minha vida, a ser frequente em uma sobreloja dessas. Sucedia que, quando calhava jantar pelas sete horas, quase sempre encontrava um indivíduo cujo aspecto, não me interessando a princípio, pouco a pouco passou a interessar-me.

Era um homem que aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado. Na face pálida e sem interesse de feições um ar de sofrimento não acrescentava interesse, e era difícil definir que espécie de sofrimento esse ar indicava - parecia indicar vários, privações, angústias, e aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito.

Jantava sempre pouco, e acabava fumando tabaco de onça. Reparava extraordinariamente para as pessoas que estavam, não suspeitosamente, mas com um interesse especial; mas não as observava como que perscrutando-as, mas como que interessando-se por elas sem querer fixar-lhes as feições ou detalhar-lhes as manifestações de feitio. Foi esse traço curioso que primeiro me deu interesse por ele.

Passei a vê-lo melhor. Verifiquei que um certo ar de inteligência animava de certo modo incerto as suas feições. Mas o abatimento, a estagnação da angústia fria, cobria tão regularmente o seu aspecto que era difícil descortinar outro traço além desse.

Soube incidentalmente, por um criado do restaurante, que era empregado de comércio, numa casa ali perto.

Um dia houve um acontecimento na rua, por baixo das janelas - uma cena de pugilato entre dois indivíduos, Os que estavam na sobreloja correram às janelas, e eu também, e também o indivíduo de quem falo. Troquei com ele uma frase casual, e ele respondeu no mesmo tom. A sua voz era baça e trémula, como a das criaturas que não esperam nada, porque é perfeitamente inútil esperar. Mas era porventura absurdo dar esse relevo ao meu colega vespertino de restaurante.

Não sei porquê, passámos a cumprimentarmo-nos desde esse dia. Um dia qualquer, que nos aproximara talvez a circunstância absurda de coincidir virmos ambos jantar às nove e meia, entrámos em uma conversa casual. A certa altura ele perguntou-me se eu escrevia. Respondi que sim. Falei-lhe da revista Orpheu, que havia pouco aparecera. Ele elogiou-a, elogiou-a bastante, e eu então pasmei deveras. Permiti-me observar-lhe que estranhava, porque a arte dos que escrevem em Orpheu sói ser para poucos. Ele disse-me que talvez fosse dos poucos. De resto, acrescentou, essa arte não lhe trouxera propriamente novidade: e timidamente observou que, não tendo para onde ir nem que fazer, nem amigos que visitasse, nem interesse em ler livros, soía gastar as suas noites, no seu quarto alugado, escrevendo também.



***



Ele mobilara - é impossível que não fosse à custa de algumas coisas essenciais - com um certo e aproximado luxo os seus dois quartos. Cuidara especialmente das cadeiras - de braços, fundas, moles -, dos reposteiros e dos tapetes. Dizia ele que assim se criara um interior "para manter a dignidade do tédio". No quarto à moderna o tédio torna-se desconforto, mágoa física.

Nada o obrigara nunca a fazer nada. Em criança passara isoladamente. Aconteceu que nunca passou por nenhum agrupamento. Nunca frequentara um curso. Não pertencera nunca a uma multidão. Dera-se com ele o curioso fenómeno que com tantos - quem sabe, vendo bem, se com todos? - se dá, de as circunstâncias ocasionais da sua vida se terem talhado à imagem e semelhança da direcção dos seus instintos, de inércia todos, e de afastamento.

Nunca teve de se defrontar com as exigências do estado ou da sociedade. Às próprias exigências dos seus instintos ele se furtou. Nada o aproximou nunca nem de amigos nem de amantes. Fui o único que, de alguma maneira, estive na intimidade dele. Mas - apesar de ter vivido sempre com uma falsa personalidade sua, e de suspeitar que nunca ele me teve realmente por amigo - percebi sempre que ele alguém havia de chamar a si para lhe deixar o livro que deixou. Agrada-me pensar que, ainda que ao princípio isto me doesse, quando o notei, por fim vendo tudo através do único critério digno de um psicólogo, fiquei’ do mesmo modo amigo dele e dedicado ao fim para que ele me aproximou de si - a publicação deste seu livro.

Até nisto - é curioso descobri-lo - as circunstâncias, pondo ante ele quem, do meu carácter, lhe pudesse servir, lhe foram favoráveis.

Nestas impressões sem nexo, nem desejo de nexo, narro indiferentemente a minha autobiografia sem factos, a minha história sem vida. São as minhas Confissões, e, se nelas nada digo, é que nada tenho que dizer.

(Trecho 121)

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